Epopeias de uma nação mentalmente marasmada produzidas sem a censura do horário nobre imposta pela sociedade.

sábado, 18 de agosto de 2012

Bocagem Cotidiana


Padece frente à mesa de inutilidades. Calculando e burocratizando, sendo calculado e criticado, ninguém valoriza tão árdua labuta. Um martírio diário onde se usam fórmulas obrigatórias que não passam de pura apologia à corrupção.
Conta tudo, soma, subtrai, tira porcentagens, alíquotas, imprime documentos, solicita requerimentos, anexa, cumpre, cobra, dá entradas, faz retiradas, liga, desliga, manda, desmanda, sê mandado, abaixa a cabeça, envia, redige... os erros de português são irrelevantes, ninguém sabe ler direito mesmo... apenas o que valem são números. Quanto mais zeros, melhor. E o prazo está acabando, o sistema não funciona, a rede caiu, o patrão viajou, a superior está de férias, teu nome pra lá, teu nome pra cá, a pressão é sobre ti, um mérito que ninguém te tirará. Mérito imposto, imposição exposta, exposição humilhante, humilhação impagável, salário vergonhoso.
As mesas idênticas, as folhas impressas, os formulários imutáveis, os erros repetitivos, os sons característicos, as tarefas mecânicas, os superiores, sandeus.
As camisas engomadas, os sapatos engraxados, as meias furadas, os cristãos, ateus.
E não há tempo, não há desculpa, não há condição, não haverá perdão. Sairá do teu bolso, pagarás o pato, pois o pato és tu próprio. A culpa é tua, a desculpa é dele, a razão é do cliente. A pressão é sobre ti, a desculpa ainda é dele, mas o regalão será de quem? Não será teu, não será meu... sim, será dele: o que te humilha, o que te pressiona, que te conta em migalhas, que te paga em miúdos. E não te agradará, não te consolará, sequer um olhar de pena, apenas cobrança, pressão, mais papéis... sim, papéis. Sublimes papiros rebaixados ao submundo. Submundo que se diz nobre, que se declara movedor de uma constituição, documento da manipulação alienada, objeto do medo, resultado da ganância, relíquia do capitalismo, da diferença, da covarde pirâmide social, onde tu és base, tu tens todos sobre os ombros, tu és responsável por todo o engenho de tão covarde monumento.
Por isso, não me olha, não me pede, não me diz, não me fala, poupa-me da tua linguagem fática. Eu não te olho, não te peço, não te digo, não te ouço, poupa-me do teu linguajar chulo. Tu não és meu superior, não olha para o lado. A hierarquia é cruel, o tempo é escasso, o intelectual é fútil, a família, substituível, a fama, um sonho, o dinheiro, um objetivo, o prazer, mundano, a paz, descartável, o Amor... desconhecido.
O Amor... ah, o Amor! Descartável sentimento confundido com atração, perdido, maculado, raridade como é. De conquista a comércio, espancado pela razão, banalizado pelo moderno, violentado pela indústria que apela pelo desvalor da imoralidade, onde o capital bate no peito, pesa no bolso e acama os falidos.

Um comentário:

  1. Gostei do texto, toda via, verifico que o mesmo foge da linguagem utilizada pelo autor nos anteriores.
    Terá um caminho longo a trilhar se pretende escrever textos "melancólicos" como a autora Clarice Lispector.

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